Life in times of... (2)
Como muitas pessoas no mundo inteiro, o horário de passear o
cachorro é ‘o filé mignon’ do dia (se me perdoam a alusão aos prazeres carnívoros,
um tanto de mau gosto nos momentos atuais, eu mesma acho). O Zeus é boxer, e brincalhão sem igual – parece
confirmar o apreciação feita nesses dias por um velho amigo meu, que disse que
a raça, apesar da sobrancelha franzida que lhe dá ares de pensador profundo, é ‘o palhaço do
reino canino’- e só de me ver pondo os tênis, sai dando pulos de alegria que o
catapultam a um metro do chão. Após nossas
duas semanas de saídas, consegui traçar o que me parece ser a melhor rota: saímos à direita, passando pela casa de
nossos únicos vizinhos simpáticos, uma família, aliás, que também vive à espreita
dos melhores horários para ocupar o pedaço de rua que lhes cabe, para o passeio
de bici das crianças; vamos seguindo o
contorno da rua, passando pelo mato
denso de onde alguma vez a vizinhança
foi surpreendida por uns macacos (e bem na época do famigerado pânico da febre
amarela), atravessamos a ponte de madeira, e seguimos até a rua mais
movimentada, onde passam carros e motos mas ainda assim, raras as vezes cruzamos
caminhos com outros humanos, ou humanos com seus respectivos cães). Depois
nos enveredamos por outras ruas, mais tranquilas, arborizadas.
O Zeus sempre vai muito animado, mas tem dia que estou com meus
nervos a flor de pele, imaginando os mais absurdos dos encontros possíveis com
o diabo do coronavirus – como se fosse uma criatura viva e voadora, capaz de
aparecer do nada, do céu, do chão, só para invadir meus pulmões e me fazer mais
uma na sua lúgubre lista. Nesses dias,
eu encurto nosso passeio, e ele, pois,
não tem escolha nessa história.
Outros dias, vence meu lado mais racional, e isso de ter o
privilégio de morar num bairro com baixa densidade populacional e pessoas que
evidentemente, até agora, vêm respeitando a quarentena, me anima também. Por exemplo, ontem:
a primeira manhã mais fria, e andamos para mais longe, exploramos as duas ruas sem saída perto do parque – onde preocupadamente percebo os sinais de destruição das fitas que barravam, pelo menos simbolicamente, a entrada – mas ainda somos nós os únicos representantes das nossas respectivas espécies. À distância, vejo os trabalhadores da prefeitura, fazendo a costumeira poda da densa vegetação que contorna a rua, conversando entre eles, como se todo estivesse normal, mas quando chegamos mais perto de onde estavam, já tinham ido almoçar.
a primeira manhã mais fria, e andamos para mais longe, exploramos as duas ruas sem saída perto do parque – onde preocupadamente percebo os sinais de destruição das fitas que barravam, pelo menos simbolicamente, a entrada – mas ainda somos nós os únicos representantes das nossas respectivas espécies. À distância, vejo os trabalhadores da prefeitura, fazendo a costumeira poda da densa vegetação que contorna a rua, conversando entre eles, como se todo estivesse normal, mas quando chegamos mais perto de onde estavam, já tinham ido almoçar.
Passamos por uma casa
onde o foodtruck de pierogi antes ficava estacionado na rua. Agora está bem
encaixadinho na entrada, com uma placa convidando o pessoal a ‘buscar sua
encomenda’. Não tem ninguém à vista, mas sim um grande cardápio, e ao lado, um pote
bem gordinho de álcool gel.
Embora outras opções existam, seguimos o mesmo caminho de
volta - menos gente, e menos cachorro
também, já que o Zeus, apesar do sua cara que assusta alguns humanos que não
sabem muito bem a diferença entre boxer e pitbull, é facilmente amedrontado e principalmente, por
cães bem menores do que ele. Chegando
perto da ponte, vejo o contorno de uma pessoa, na verdade, de uma mulher e uma
criança, a mãe agachada e conversando, mostrando alguma coisa à pequeninha. Reconheço
a sujeita – uma jovem que quando criança, brincava com meus filhos, quando
nossa rua ainda não era asfaltada, quando ainda parecia chácara ou bairro do
interior por aqui, quando as pessoas ainda chegavam até botar uma grande mesa
de madeira bem no meio da estradinha para festarmos, todos juntos... Mas nesses últimos tempos, outras coisas
aconteceram. Muitas coisas, muita ‘água
embaixo da ponte’. Também literalmente.
Vejo que ela já me viu. Vira mais um pouco de costas, enquanto
vou chegando mais perto. Motivos, uma de
duas. Ou duas de duas. Não sei. Pretendo passar reto. Ela, sem levantar, alça a cabeça, vejo o esboço
de um sorriso tímido, e ela me cumprimenta, falando meu nome. E eu aproveito o momento, pois havia muito
tempo que lhe precisava dizer umas quantas coisas. Olhei
para ela:
- Sabe, fulana, eu
não costumo conversar com eleitores do Bolsonaro. E muito menos com vizinhos que xingaram meus
filhos. Que vergonha, hein? Quanto
preconceito. E quanta tragédia que
estamos vivendo, graças a vocês.
Ela, que tanto tinha vociferado, no grupo WhatsApp da rua, ela,
a mais fanática, a mais negacionista, a mais ridícula e braba de todos. Hoje fica lá agachada, olhando timidamente
para mim. Sem palavras.
Zeus e eu seguimos nosso caminho, e me pergunto se terei
ainda a oportunidade de tirar esse peso de cima, de olhar para a cara de outras
pessoas que conheço, e dizer bem isso, o que a gente está guardando dentro,
para quando vier o momento cara-a-cara. E
sabendo também que isso não mudará nada.
O rumo da história, as péssimas escolhas de muitas pessoas, e tudo o que
virá por causa disso. Volto a casa, apenas
um pouquinho mais leve.
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